A APLICAÇÃO DO ARTIGO 5 º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL NA DEFESA DOS DIREITOS ANIMAIS

 Por Letícia Filpi


A tradição aristotélica e kantiana colocaram o ser humano como único ente moral por sua racionalidade, ou seja, a capacidade de pensar, de usar a linguagem e de ter consciência de si. Os dois filósofos usaram como critério determinante para um sujeito ser membro da comunidade moral e beneficiar-se na distribuição da justiça características que, depois da Declaração de Cambridge (2012), se atribuem também aos animais.


Interessante o ponto de vista colocado pela filósofa Sonia T. Felipe no que concerne à precariedade em se fundamentar o ser humano como moralmente superior:


"Em Aristóteles a hierarquia dos seres vivos ficou estabelecida do seguinte modo: as plantas servem para os animais e estes, do mesmo modo que os escravos, incapazes de conceber um princípio racional e submetidos à lei - da natureza e do proprietário -, existem para servir aos homens. É preciso lembrar que homem, para a concepção aristotélica, é uma categoria que designa alguém do sexo masculino, nascido em Atenas, proprietário e livre para decidir o que diz respeito à sua propriedade e aos negócios públicos. Nesse sentido, não entram na comunidade moral aristotélica nem as plantas, nem os escravos, nem os animais, pois são destituídos da racionalidade que caracteriza a existência do homem." (FELIPE, Sônia T. Agência e Paciência Moral: Razão e Vulnerabilidade na Constituição da Comunidade Moral. ethic@, Florianópolis, v.6, n.4 p.69-82, ago, 2007. Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/ethic@/et611art7.pdf Acesso em: 3 maio 2010. )


Paradoxalmente, a teoria aristotélica mostra que animais importam no mesmo nível que a espécie homo sapiens, tendo em vista que a capacidade de consciência, sentimentos e interesses próprios dos animais foi comprovada cientificamente pela Declaração de Cambridge (2012), além dos estudos da primatóloga Jane Goodall, que atestou o uso de instrumentos por chimpanzés, bem como inúmeros estudos científicos provando o uso de linguagem pelos não-humanos. Essas teorias e conclusões jamais foram refutadas pela ciência. 


A filosofia por sua vez, destaca que animais são um fim em si mesmos e não instrumentos de bem estar humano, afinal possuem a capacidade de pensar e decidir. Sem prejuízo disso, animais cumprem sua missão como terráqueos quando estão exercendo sua função ecológica na natureza e não quando se encontram sob cárcere na sociedade humana, sendo geneticamente modificados e transformados em máquinas de produção de lucro. 


O filósofo Tom Regan desenvolveu a teoria dos animais como sujeitos de uma vida, demonstrando de forma fundamentada seu valor como indivíduos. Segundo as conclusões do estudioso, um sujeito-de-uma-vida é o ser autoconsciente e sensível, o qual possui capacidade de interesses, desejos, crenças, entre outras características que fazem dele um ser vivo único. (Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos dos animais – Tom Regan)


A capacidade de raciocínio e consciência não é o único fato gerador de direitos, mas, também, a existência autônoma. Não fosse isso, seres humanos sem capacidade de raciocínio e consciência (nascituros, pessoas, em coma, etc.) não teriam direitos. Com isso, conclui-se que a atribuição de direitos inatos aos animais decorre do fato, não só de sua capacidade de pensar, como de serem um fim em si mesmos, sujeitos de uma vida. Não se trata aqui de dizer que animais poderão gozar de direitos que só aos humanos interessam (a compra de um terreno) ou de obrigações atinentes apenas à sociedade humana, como pagar impostos, mas de direitos que nascem com eles como seres pensantes, sensíveis e autônomos, quais sejam: vida, liberdade e dignidade.


Frente a isso, nos deparamos com a estarrecedora realidade de que a sociedade humana vem afrontando direitos dos outros habitantes do planeta sem se dar conta de que, moralmente, somos iguais. O princípio da igualdade entre seres aponta que o ser humano não está em patamar moral superior, especialmente porque são apenas uma, dentre as bilhões de espécies de vida habitando o solo planetário.


Com isso, se humanos e animais possuem comprovadamente, o mesmo valor moral, então o artigo 5º da Constituição Federal pode ter interpretação extensiva a esses sujeitos de direito. Se eles possuem direitos inatos e se todos os sujeitos de direitos são iguais perante a Lei, então os animais que são afetados por catástrofes ambientais, como desastre de Mariana e os incêndios pantaneiros, têm o respaldo da lei para ter seu habitat reconstituído, senão, vejamos:


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (grifo nosso)  (...)

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;


Posto isso, temos que os animais possuem todas as condições de serem abraçados pelo caput e incisos do artigo em tela. A norma é clara: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Veja que não se conceitua “todos” como apenas seres humanos, mas, nitidamente, como sujeitos de direito. Na sequência, o texto diz: “sem distinção de qualquer natureza”, ou seja, a espécie não será empecilho para que os direitos e garantias fundamentais sejam aplicados a sujeitos não-humanos. 


Sendo assim, a inviolabilidade dos direitos inatos à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança se aplica inexoravelmente aos animais e, nesse contexto, os seres humanos violam a todos quando, com sua ação e omissão permitem que se escravizem, explorem, maltratem, e destruam os habitats e submetam à propriedade alheia esses sujeitos.


No inciso III, há, ainda, a proibição do tratamento desumano ou degradante, também afrontado pela ausência total de politicas públicas para os animais dentro da sociedade humana, bem como pela permissão do tratamento deles como propriedade, que gera aberrações como a comercialização, a existência de matadouros, biotérios, utilização para diversão, caça, entre outros absurdos.


Posto isso, é medida de justiça, ética, respeito ao ordenamento jurídico e aos direitos animais medidas para a concretização imediata de políticas públicas para os não-humanos e o começo da mudança de tratamento desses indivíduos dentro de nossa sociedade. Animais não podem mais ser vistos como propriedade ou instrumento para o bem estar da raça humana. Animais têm direito à liberdade, dignidade, segurança e proteção contra o tratamento degradante garantidos pela Constituição Federal. 


Isso sem falar no direito a ter seus habitats preservados, como medida que garante a vida digna. Assim, é urgente a implementação de politicas de prevenção a desastres que coloquem em risco a vida animal, bem como programas de resgate, acolhimento e soltura.


É necessária uma nova interpretação da lei para reconhecer que os animais são especialmente considerados no contexto constitucional. O fim da escravidão dos animais é medida urgente, inexorável e que trará imensos benéficos aos seres humanos, inclusive, afinal, por serem os animais fundamentais ao equilíbrio da vida, sua liberdade auxiliará os fluxos vitais do planeta. Mas, antes de pensar em sua função ecológica, devemos libertar os animais, predominantemente, por seu valor moral incontestável.


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