COM EMENDA, PROJETO DE LEI QUE AUMENTA PENA DO CRIME DE MAUS TRATOS PREJUDICA ANIMAIS.
COM
EMENDA, PROJETO DE LEI QUE AUMENTA PENA DO CRIME DE MAUS TRATOS PREJUDICA
ANIMAIS.
Por
Letícia Filpi*
17.12.2018
Tramita no Congresso
Nacional o PLS 470/2018, projeto de lei proposto pelo senador Randolfe
Rodrigues (REDE/AP), que modifica o artigo 32 da lei 9.605/98, para aumentar as
penas do crime de maus tratos e responsabilizar os estabelecimentos comerciais
que concorrerem para as práticas criminosas previstas na referida norma.
O projeto nasceu no
Senado Federal e recebeu duas emendas, a primeira proposta pelo próprio Senador
Randolfe, determinando a pena de reclusão
de um a quatro anos de prisão ao infrator e, também, adicionando a palavra
“abandono” dentre as condutas criminosas descritas no “caput” do artigo 32.
Apesar de a modificação
ser ótima e ter sido aprovada, o projeto sofreu uma segunda alteração,
apresentada pelo senador Otto Alencar, que retirou a palavra “abandono”, substituiu
a reclusão por pena de detenção e, o
que causa maior espanto, propôs um quinto parágrafo ao artigo 32, excluindo das
hipóteses do caput do artigo 32, os esportes equestres e as vaquejadas.
1. Da pena de detenção de 1 a 4 anos –
consequências
Transação
Penal:
O aumento da pena
máxima do crime de maus tratos para 4 anos tira o processo da competência do
Jecrim e passar para o Juizo Comum Ordinário. Isso significa que as infrações
do artigo 32 não mais serão consideradas de menor potencial ofensivo. Significa
dizer que não haverá termo circunstanciado, mas inquérito policial e que o
procedimento processual aplicado será o do Código de Processo Penal e não da
Lei 9099/95 (“art
61 – consideram infrações penais de menor potencial ofensivo (...) os crimes
que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos e multa”). Assim, a vantagem é que a transação penal não
mais poderá ser aplicada aos casos de maus tratos, ou seja, o Ministério Público
não poderá propor a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva
de direitos (a famosa cesta básica). Além disso, o artigo 7º da Lei 9.605/98 não
permite a substituição da prisão por alternativa quando a pena máxima cominada
for 4 anos ou mais.
Ou seja, agora, não
teremos mais a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de
direitos.
Suspensão
do processo ou da pena:
Será possível,
entretanto, ao promotor, propor a suspensão condicional do processo por 2 a 4 anos, pois a pena mínima cominada é de 1 ano. A suspensão condicional da pena também pode ser proposta, se a sanção aplicada pelo juiz for inferior a 3 anos (art.16 da lei
9.605/98)
O que isso quer dizer:
o processo ficará suspenso e, durante o período de suspensão, o condenado terá
que se submeter ás condições que o juiz determinar, como por exemplo, a
reparação do dano e proibição de frequentar certos lugares, entre outras
previstas na lei. Ao final do prazo, o juiz declara extinta a punibilidade do
autor do crime. Ou seja, mesmo com o aumento da pena proposto no PLS 470, há a
possibilidade de o agente ter uma espécie
de substituição de pena e não ser preso.
Além disso, a detenção
é espécie de pena privativa de liberdade que pode ser cumprida em regime aberto,
sendo que o condenado a pena de inferior a 4 anos cumprirá a sentença nesse
sistema.
Assim, dificilmente
veremos um condenado por crime maus tratos preso, a não ser que ele cometa mais
de uma conduta criminosa na mesma ocasião, pois, neste caso haveria o que o
Direito chama de concurso material de crimes e as penas se somarão,
possibilitando, assim, a prisão.
2. Da excludente de ilicitude do parágrafo
5º - consequências
Representando uma
verdadeira tragédia para a causa animal, essa segunda emenda foi aprovada pelo
Senado, e o PLS 470/18, que poderia ser um grande passo para a defesa dos
direitos animais no Brasil, se transformou em um escudo de proteção para todos
aqueles que torturam não-humanos em vaquejadas, rodeios, provas de hipismo,
entre outras práticas que exploram equinos para diversão humana.
O parágrafo em questão diz
o seguinte:
“§5º Não configuram os
atos previstos no caput deste artigo os esportes equestres e as vaquejadas”.
Isso significa que as
hipóteses previstas no artigo 32 serão submetidas a excludentes de ilicitude
para proteger quem se locupleta do sofrimento animal em festas de rodeio,
vaquejadas e outras práticas ultrapassadas.
Vale dizer que, apesar da
subsunção das condutas às hipóteses do artigo 32, estas não serão consideradas
crimes e, portanto, não sofrerão condenação do Estado. Assim, aqueles que
praticarem maus tratos nas situações previstas não viverão as consequências da
lei, ainda que se comprovem o sofrimento físico e/ou psicológico do animal.
A modificação acolhe
todos os atos brutais cometidos contra bovinos e equinos em algumas das mais
cruéis formas de diversão humana.
As vaquejadas, por
exemplo, já foram consideradas “intrinsecamente
cruéis” em votação no Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADI nº4983,
que analisava a constitucionalidade da lei nº 15.299/13-CE. Essa lei, que
regulamentava vaquejadas, foi considerada inconstitucional na mais alta corte
do país, por tentar legalizar prática que afronta o principio constitucional da
não crueldade com os animais.
Os ministros do STF proferiram a sentença final
com base nos laudos acostados, que revelaram, sem a menor sombra de dúvida, os
absurdos que são impostos aos animais nas vaquejadas. Os documentos comprovaram
o arrancamento de caudas, fraturas de patas, ruptura de ligamentos e vasos
sanguíneos, colunas lesionadas, animais amputados, paraplégicos. Além do horror
psicológico imposto através de choques elétricos, som alto, gritos, xingamentos.
Tudo isso porque as provas consistem em perseguir um boi amedrontado,
agarrando-o pela cauda e derrubando o animal ao chão. Nesse caminho, ocorrem
lesões irreversíveis e se faz impossível negar que, sem a tortura a atividade
não acontece.
No que se refere às
provas equestres, temos como exemplos as provas do tambor, comuns em rodeios,
em que os cavalos são obrigados rodopiar entre tambores, sendo chicoteados e cutucados
com esporas para que corram além de suas forças. Também há outras, como provas
de hipismo, corridas de jóqueis (nessas, há notícias de que cavalos são dopados
e terminam loucos por conta da exaustão física e psicológica, os cavalos
aposentados ficam completamente inválidos).
Frente a esses fatos, a
proposta de emenda, aprovada no senado, é um absurdo jurídico e moral. Apesar de a EC 96/16 (que acrescentou o § 7º
ao artigo 225 da CF) já ter determinado que não são consideradas cruéis as práticas desportivas que utilizem
animais, desde que sejam manifestações culturais, o fato da emenda ora
analisada excluir as vaquejadas e esportes equestres do crime de maus tratos impossibilitará
por completo proteger os animais usados nessas intoleráveis práticas.
Ainda que os indivíduos
violentados venham a óbito ou estejam seriamente feridos, eles estarão
completamente desamparados e nada poderá ser feito para punir os criminosos e
evitar futuras tragédias.
A EC 96/16 coloca a
necessidade da confecção de lei infraconstitucional para assegurar o bem estar
dos animais. Significa que ainda tínhamos brechas, argumentos para defender os
animais, pois o próprio paragrafo 7º admite a possibilidade de existência de
maus tratos. Com a excludente de antijuridicidade, ainda que se pratiquem os
crimes na frente das autoridades policiais e judiciais, a conduta não poderá
ser evitada ou punida.
O parágrafo proposto
retira bovinos e equinos da esfera de proteção legal para privilegiar práticas
nitidamente injustas. Tudo isso para beneficiar os poucos empresários que
lucram com esses eventos, de modo que, se ponderarmos valores, a crueldade
contra os animais está sendo tolerada para valorizar o interesse de poucos em
continuar torturando seres inocentes por diversão e dinheiro.
Devemos lembrar que o Brasil admite o sacrifício animal apenas
quando este for necessário para sobrevivência humana, o que não inclui a
diversão pura e simples. As práticas protegidas pelo paragrafo 5º são fúteis,
perigosas, imorais e de um atraso social sem explicação. Então, mesmo sob o
ponto de vista do ordenamento jurídico, está errado, é inconstitucional! Nesse
momento, ocorre perguntar qual o critério que a Comissão de Constituição e
Justiça do Senado utilizou para permitir a aprovação de uma verdadeira
aberração jurídica como essa.
Do ponto de vista da
realidade animal, fica ainda mais inaceitável, uma vez que, sabendo-se que
animais são conscientes e racionais, dotados dos direitos inerentes à vida,
liberdade e dignidade, eles não deveriam sequer ser tratados como propriedade
humana. A realidade é que o homem domina esses seres pela força, apenas, pois não
há nenhuma justificativa moral, biológica, sobrenatural ou jurídica que
fundamente a situação do animal-coisa, do animal-propriedade. Juridicamente, o ordenamento cria artifícios
para embasar esse tratamento, conceituando animais sob uma perspectiva de
interesses humanos e não de realidades e, portanto, não pode ser considerado um
fundamento válido.
Diante de tudo o que
foi exposto, nasce a conclusão de que temos mais uma lei moralmente
esquizofrênica no Brasil, protegendo cães e gatos e condenando bovinos e
equinos a serem torturados nas arenas. Não obstante isso, o aumento de pena
proposto para crimes contra animais de estimação ainda encontrará dificuldades para
colocar o infrator na prisão.
Não é preciso ser
jurista para perceber que o projeto de lei 470/18, embora certamente tenha
nascido com as melhores intenções, se tornou um excelente instrumento para
proteger os piores crimes de maus tratos contra animais. Vamos torcer para que
a manobra do Senador Otto Alencar não seja aprovada na Câmara dos Deputados ou
seremos obrigados a assistir, impotentes, ao espetáculo da crueldade contra animais
humilhados, atormentados, feridos e mutilados nas arenas.
*Letícia Filpi,
advogada, vice-presidente da Abraa e coordenadora do Grupo de Advocacia Animalista
Voluntária – GAAV/ABRAA.
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