ARTIGO - DA CONSTITUCIONALIDADE DO PL 31/2018 DO ESTADO DE SÃO PAULO – “LEI DOS BOIS”
Por
Letícia Filpi
15.07.2018
Tramita na Assembleia Legislativa
do Estado de São Paulo, projeto de Lei de autoria do deputado Feliciano Filho,
que objetiva proibir a exportação e embarques de animais vivos nos portos
marítimos e fluviais do referido Estado.
A normativa expressa-se da seguinte forma:
“Artigo
1º -
Fica proibido no Estado de São Paulo o embarque de animais vivos no transporte
marítimo e/ou fluvial, com a finalidade de abate para o consumo.
Artigo
2º - O descumprimento do disposto na presente Lei
ensejará ao infrator, a multa de 195 UFESP’s (Unidade Fiscal do Estado de São
Paulo) por animal, dobrando o valor a cada reincidência.”
(...)
Como justificativa, o legislador
baseia-se nos estudos reveladores dos inúmeros tormentos aos quais os animais
são submetidos nas atividades de transporte, embarques de animais e permanência
dos mesmos dentro dos navios durante as longas viagens que enfrentarão,
demonstrando que o objetivo do projeto apresentado é exclusivamente ambiental.
1.
Da
inconstitucionalidade da exportação de animais vivos.
De acordo com laudo¹ confeccionado
por ordem judicial exarada em Ação Civil Pública interposta para impedir a
atividade de exportação de animais nos Portos do Brasil, constatou-se a
seguinte realidade: no transporte rodoviário até os portos, os animais viajam
em meio a fezes e urina nas caçambas dos caminhões, chegando ao destino
prostrados e exaustos. No espaço de confinamento das caçambas não há condições de se movimentarem durante
as mais de dez horas de viagem. Ainda, é
conduta comum os caminhões e suas caçambas possuírem varetas com pontas
metálicas conectadas ao sistema elétrico do veículo, cujo objetivo é impedir,
mediante descargas elétricas, que os animais se deitem no assoalho do veículo. Não
obstante isso, nas embarcações marítimas, também há utilização de choques
elétricos para coagir e aterrorizar os animais, para que ingressem nos andares
inferiores até que se alcance a lotação limite ou previamente estipulada. Outra
realidade observada no laudo processual e em outros estudos é que os garrotes
para exportação são alocados em baias com espaços menores que 1m2 por indivíduo. Nos andares inferiores, constatou-se que as
condições de higiene são muito precárias, posto que “a produção de dejetos
(excrementos e urina) pelos animais nesses ambientes fechados, os expõe de
maneira íntima e constante a um cenário de intensa insalubridade.”
O
laudo produzido relata que, em uma semana, “imensa quantidade de urina e
excrementos produzida e acumulada nesse período, propiciou impressionante
deposição no assoalho de uma camada de
dejetos lamacenta. O odor amoniacal nesses andares era extremamente intenso
tornando difícil a respiração.”
Testemunhas da visita revelaram que
o sistema de ventilação artificial buscava atenuar o efeito do acúmulo de gases
e odores, mas a poluição sonora (em decibéis) resultante de seu constante
funcionamento era insuportável pelo elevado grau de ruído.
Isso sem citar que a equipe de
veterinários do navio sempre é insuficiente,
na quantidade média de um a três profissionais, assessorados por um total
de oito vaqueiros, para mais de 20 mil
indivíduos bovinos. Ou seja, aproximadamente um veterinário para cada 9000
animais em confinamento.
Essa realidade foi descrita na
inspeção do navio NADA, de Bandeira Panamenha, o maior do mundo, com capacidade
para 27 mil animais de grande porte. Imprescindível notar que essa inspeção foi
realizada depois de uma semana em que o navio estava atracado com os garrotes
no porto de Santos, por conta de liminares que suspenderam os embarques e de
desobediência dos exportadores à ordem judicial² para desembarque dos animais.
Assim, considerando-se que esses navios levam de 15 a 20 dias para chegar a seu
destino, o estudo acima citado foi feito exatamente no que seria a metade da
viagem, atestando com certeza a condição dos animais durante o percurso a ser
percorrido.
Pois
bem, com a ciência do cotidiano brutal da atividade de exportação de animais
vivos por via marítima, fica possível perceber todas as inconstitucionalidades
envolvidas, uma vez que a descrição acima mostra, nitidamente, condutas típicas
do crime de maus-tratos.
A
Constituição Federal de 1988, como é amplamente sabido, proíbe de forma
clara e inquestionável a crueldade contra os animais no capítulo que define a
Proteção ao Meio Ambiente, mais precisamente, no artigo 225, §1º, VII.
Assim fica expressamente vedada toda e qualquer
submissão de animais à crueldade. Veja, a Carta Maior não faz nenhuma
concessão à atividades de exploração animal.
Não permite o referido dispositivo que por motivo relacionado à condução
de atividade econômica possa o animal ser submetido a qualquer ato que lhe
cause tormentos físicos ou psicológicos.
O que ocorre no
interior dos navios e caminhões boiadeiros são fatos que se submetem, portanto,
às hipóteses jurídicas do artigo 32 da lei 9.605/98, uma vez que, assim como ocorre
na Constituição Federal, não existe nesta norma, nenhuma excludente de
ilicitude para a atividade pecuária. E é fácil entender o motivo.
O confinamento e
comércio são atividades que só podem envolver coisas inanimadas, posto que
implicam em transferência de posse e
propriedade mediante o pagamento de quantia em dinheiro. Desse modo,
considerando o que a ciência já comprovou³, que animais possuem consciência de
si mesmos e interesses próprios, sendo donos de suas vontades e capazes de
escolher seu destino, qualquer tentativa de objetificação para comércio será
violência que implicará maus tratos, afinal o dano psicológico também se
encaixa no agir cruel. Neste caso, a objetificação para fins de comércio
significa retirar do animal sua identidade e liberdade de escolha, esmagando
por completo a dignidade que lhe é inerente como individuo.
Por consequência,
as condições inadmissíveis descritas nos laudos e testemunhos supramencionados,
são o exaurimento dos maus tratos, o ápice da conduta delitiva contra os
animais.
Mesmo com a
existência de normativas técnicas (4) que tentem minimizar o sofrimento, é
evidente que estas não são suficientes para anular o flagelo sofrido por indivíduos
sencientes no interior dos navios de carga e caminhões boiadeiros, uma vez que
a própria estrutura destes locais é feita para carga de objetos, não de
criaturas vivas e conscientes. Consequentemente, instruções técnicas não são
capazes de atribuir efeito que exclui a ilicitude dos fatos ocorridos neste
comércio.
Assim, a atividade
econômica ora estudada causa uma ruptura na harmonia social ao lesar bem
jurídico protegido por lei e vai contra os princípios da ordem econômica do
país, principalmente o que se encontra afeto à função social da empresa,
afinal, o lucro, os ganhos financeiros e o crescimento da empresa não podem se
sobrepor a princípios de ética, justiça
social e justiça ambiental. (artigo 170 CF, VI – “A ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios (...)VI - defesa do meio ambiente”).
A função
social é princípio que garante que toda atividade empresária siga sempre na
direção da justiça e da legalidade, estabelecendo limites para que se
desenvolva de forma ética e sustentável. Nas palavras de Paloma Torres Carneiro, “o conceito de função social da empresa engloba a ideia de que esta não
deve visar somente o lucro, mas também preocupar-se com os reflexos que suas
decisões têm perante a sociedade, seja de forma geral, incorporando ao bem
privado uma utilização voltada para a coletividade; ou de forma específica,
trazendo realização social ao empresário e para todos aqueles que colaboraram
para alcançar tal fim”.
À vista disso, entende-se que o meio ambiente esteja conectado à ideia
da função social da empresa e, portanto, qualquer atividade que envolva
crueldade, desrespeito e maus tratos vai contra o ordenamento jurídico de forma
absoluta, uma vez que, ao infringir as normas e princípios ambientais e de
conduta ética, automaticamente, fere a Constituição Federal, seja no que
concerne ao meio ambiente ou à ordem econômica.
2.
Da Constitucionalidade do Projeto de Lei 31/2018
Como já exposto, a
“Lei dos Bois” visa proibir a exportação de animais vivos nos portos marítimos
e fluviais do Estado de São Paulo como forma de evitar que a crueldade contra
os animais se perpetue com o aval do Estado. A Lei deixa claro que qualquer
tentativa de minimizar o sofrimento dos animais para exportação será inútil e
que, portanto, sua proibição é medida única e absolutamente necessária para
limitar a atividade econômica, fazendo com que esta se encaixe nos mandamentos
legais impostos em normas constitucionais e infraconstitucionais. Por todos os
motivos expostos no item 1. deste artigo, fica impossilitado a qualquer norma
técnica evitar o sofrimento na cadeia logística que envolve a exportação de
não-humanos vivos.
Frente a isso, a
primeira certeza acerca da constitucionalidade da lei é que ela procura proibir
atividade que envolve ilícitos ambientais graves, cumprindo, portanto a função
Estatal de controle da atividade econômica para proteção do meio ambiente. O
argumento de que a norma tenta proibir o livre comércio cai por terra quando se
considera que este comércio envolve condutas que afrontam os princípios
constitucionais da atividade econômica e do meio ambiente.
Além disso, sabe-se
que economicamente, a exportação de animais vivos é setor da economia que
impede o fluxo do desenvolvimento tecnológico no país, uma vez que a venda da
“matéria prima” bruta incentiva sistema que se assistiu tristemente no Brasil
–colônia, em que se vendia o produto in
natura para que fosse processado em outros países. Consequência disso é a
clareza de que esse tipo de atividade causa um retrocesso inadmissível em
termos tecnológicos. Isso sem mencionar os prejuízos na geração de empregos,
afinal, o que se vê é a geração de poucos empregos, a maioria trabalho que não
exige aprofundamento técnico ou cientifico.
Assim, o controle
estatal que visa impedir atividade que, além de envolver ilegalidades, ainda
vai na contramão da evolução industrial de um país não pode ser considerado
inconstitucional.
Substancial
lembrar que o princípio da livre iniciativa não é absoluto. Em voto, o Ministro
Eros Grau explica que “se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de
outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a
garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto
(...). Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o
interesse da coletividade, interesse público primário.” (5)
REFERÊNCIAS
¹ Ação Civil Pública n. 5000325-94.2017.4.03.6135
² Ação Civil Pública n.
1000419-39.2018.8.26.0562
³ Declaração
de Cambridge sobre a Consciência Animal Nós declaramos o seguinte: "A
ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente
estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos
têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados
de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos
intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não
são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência.
Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras
criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos
neurológicos". * A Declaração de Cambridge sobre a Consciência foi escrito
por Philip Low e editado por Jaak Panksepp, Diana Reiss, David Edelman, Bruno
Van Swinderen, Philip Low e Christof Koch. A Declaração foi proclamada
publicamente em Cambridge, Reino Unido, em 7 de julho de 2012, no Francis Crick
Conferência Memorial sobre a Consciência em animais humanos e nãohumanos, no
Churchill College, Universidade de Cambridge, por baixo, Edelman e Koch. A
Declaração foi assinada pelos participantes da conferência, naquela mesma
noite, na presença de Stephen Hawking, na Sala de Balfour no Hotel du Vin, em
Cambridge, Reino Unido. A cerimônia de assinatura foi imortalizada pela CBS 60
Minutes Para saber mais: http://fcmconference.org/
4. INSTRUÇÃO
NORMATIVA Nº 13, DE 30 DE MARÇO DE 2010
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